A viagem à frente parecia longa, mas não seria maior da que nos levara até ali. Foram muitos meses de preparação, de orações e de desafios. Em nosso grupo, não havia um só integrante que não enfrentara oposição, questionamentos e até mesmo desconfiança e algum desdém: “afinal, com tanto para fazer aqui no Brasil, por que é que você vai para o Oriente Médio?” Mas agora, nada disso importa mais. Na verdade, nunca importou. Para nós, sempre bastou a certeza que Deus nos dera desde o primeiro momento.

Certeza essa que aumentou quando, pouco a pouco fomos apresentados uns aos outros, ainda que virtualmente. Pessoas com a mesma visão, propósito e a sede de se envolver em algo imenso que Deus já está fazendo por toda a região. Nenhum de nós queria apenas ouvir das grandes coisas que o Amigo – como deveríamos nos referir a Ele a partir de agora – estava realizando. Desejávamos ser participantes. E, naquele momento, quando nos encontramos, finalmente tudo isso começava.

O primeiro dia de trabalho foi de muita preparação. Como parte do grupo que veio para a cidade menor, só posso falar por nós, é claro; mas as histórias que o grupo da capital já contou sobre as coisas de lá mostram que, mesmo de longe, estamos em total sintonia. De nossa parte, há muita coisa a fazer para receber os pequenos: decidir brincadeiras, jogos, brindes, esportes… foi uma madrugada de muito planejamento, muita tesoura, cola, encaixes e risadas. E de ouvirmos o relato em primeira mão de alguém que desafiou, e ainda desafia a família, amigos e sua sociedade por amor ao Filho do Amigo.

O rapaz é alguém que tem sede da Palavra, que quer falar para os seus sobre ela, mas que está impedido pela realidade em que vive. Ele que vive sob ameaça permanente e não no sentido genérico da palavra, mas no sentido pessoal. Gente que sabe seu nome, seu endereço e os lugares que frequenta. E mais, que sabe quem é que também está nesses tais lugares e que não acharia nem um pouco ruim se todos ali desaparecessem.

Quando enfim amanheceu e as crianças chegaram aos montes! De todas as idades e com muita energia para gastar. Como meninas e meninos não podem brincar juntos, nossa equipe pensou em brincadeiras especiais para cada grupo, além de contação de histórias e atividades manuais.

De lanche tomado, e depois de um breve descanso, foi hora de brincar sob o sol do deserto. Não é preciso muito, exceto disposição, para cair nas graças da molecada. Dois baldes de água, alguns cones e bastante imaginação. Além do grande coringa das diversões infantis: a bola de futebol. E uma partida de futebol desses meninos conta muito sobre a realidade áspera e impessoal em que vivem. Mostra o quanto precisam de amor e, mais ainda, o quanto estão disponíveis para recebê-lo.

Enfim as meninas se juntam. Também por questões religiosas e culturais, nós homens não podemos interagir muito com elas. Mas agora, nesse ambiente lotado e com mulheres adultas por perto, nos revelamos como aquilo que nos tornamos: uma família.

O dia chega ao fim. Em fila – ou quase –, as crianças recebem seus presentinhos e saem felizes e exaustas. Assim como nós, que nos sentimos muito mais presenteados do que elas. É um privilégio ser participante de tudo isso.

Antes de encerrar definitivamente o dia, após o jantar, uma nova oportunidade de entender um pouco do que é viver com medo apenas por defender sua fé e sua identidade: duas irmãs de um país próximo contaram não um, não três, mas vários episódios ocorridos com elas. Não com amigos, não que ouviram; com elas. Para fugir dos horrores que viveram e presenciaram, foram para a Capital apenas para continuarem vivas. Na condição de refugiadas, não só não podem trabalhar como, ainda que pudessem, dificilmente conseguiriam emprego porque o povo deste país não gosta de refugiados.

São meninas capacitadas e inteligentes! Uma é arquiteta e a outra, precisou trancar a faculdade para fugir. As duas são tradutoras, e já as vi falando pelo menos três idiomas. Por serem novas, com vinte e poucos anos, os homens e a sociedade dizem que elas deveriam se casar e ter filhos. Só. Tudo o que podem fazer para tentar conseguir dinheiro é justamente alguma coisa como tradutoras, mas como todo trabalho freelancer, nunca há nada garantido.

Então elas conheceram a missão, e viram na dificuldade de comunicação dos recém-chegados uma oportunidade de ouro para enfim terem um trabalho fixo, traduzindo a Palavra e transmitindo o amor de Deus ao mesmo povo que as forçou a sair do seu próprio país. Mas nenhuma delas admitiu ganhar uma moeda que seja para fazer isso. E elas fazem tudo. De cuidar das crianças a fazer comida, de ajudar a escrever um e-mail a faxinar sala por sala da instituição.

A mais velha, que vim a saber, enfim conseguira um emprego na capital, pediu licença dele para estar aqui, nesses dias, fazendo parte do mesmo projeto que nos trouxe. Ambas sorrindo o tempo todo. Ambas encantadoras.

Finalmente o dia se encerra. E pensar que achávamos que nós é que seríamos bênção para alguém...

 

 

Voluntários Sem Fronteiras - Oriente Médio